Nunca encontrei ninguém completamente incapaz de aprender a desenhar.

John Ruskin, intelectual inglês do século XIX


Pensamos que o Diário Gráfico melhora a nossa observação, faz-nos desenhar mais e o compromisso de colaborar num blogue ainda mais acentua esse facto. A única condição para colaborar neste blogue é usar como suporte um caderno, bloco ou objecto semelhante: o Diário Gráfico.


Neste blogue só se publicam desenhos feitos de observação e no sítio

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Türk Postallar vol 05: Tayyip Istifa

Domingo é dia de pic-nic, toda a gente o sabe. Nesga de espaço verde é rapidamente apropriada por famílias— e o espaço verde é um termo bastante lato, vai desde a floresta até ao relvado na rotunda. O importante é picnicar. E neste Domingo, Gezi não foi excepção— após ser tomado pelos manifestantes no Sábado, Gezi foi agora tomado por todo o tipo de gente, de manifestantes a famílias com crianças, enfim, todos aqueles que Recep Tayyip Erdoğan classifica de terroristas/naïfs manipulados/gente-que-não-respeita-a-democracia/etc...etc...etc... Em Taksim, seguiam os comícios perante uma praça à pinha. Da polícia, nem vivalma.

Criança brincando no parque-infantil de Gezi Parkı

Uma manifestante que nos viu a desenhar perguntou-nos se tivémos medo. "Só da polícia", respondemos. Disse-nos que houve manifestações em quarenta e oito cidades por toda a Turquia. E por toda a Turquia se repetiram cenas de uma brutalidade policial desmedida, desde agressões gratuitas a pedestres pacíficos, a tanques-de-água a tentar varrer pessoas para o mar, a disparos com balas reais (alegadamente há um morto em Ancara, vítima de um disparo de revólver efectuado pela polícia.

O primeiro-ministro, que é daquela estirpe de homens que raramente tem dúvidas e que nunca se engana, afiançou aos meios sociais amigos (aqueles que não cobrem os protestos) que não há volta a dar: o quartel Otomano é mesmo para construir. Para quê, ninguém parece saber, nem mesmo o primeiro-ministro, que afirma ainda não se sabe o que irá ocupar o quartel. "Talvez um museu, talvez outra coisa, ainda não sabemos." Mas se não sabem, para quê construir? Gente cobarde e pouco frontal é assim, mente e fala com palavras dúbias. Mas não ficou por aqui. Tayyip afirmou que o Centro Cultural Atatürk é mesmo para vir abaixo, e no seu lugar crescerá nova mesquita. Simbólico mais simbólico não há— em vez de um local cultural associado ao progressista e ferozmente laico fundador da Turquia moderna, teremos uma nova mesquita que ninguém pediu, numa cidade em que, dizem-me, há mais mesquitas que em Teerão. É assim a noção de estado de Tayyip Erdoğan, onde este anúncia o que se deve ou não fazer numa cidade, substituindo-se ao edil local (será um fantoche?), contra a vontade da população. E isto em alguém que deveria respeitar a laicidade do estado. Há ainda uma questão insidiosa sobre a construção desta mesquita. Ora com a nova lei que impede a venda de álcool em supermercados e mercearias entre as dez da noite e seis da manhã, veio uma outra que impede que essa venda seja feita a um determinado número de metros de escolas— e mesquitas... Continua portanto a ofensiva anti-alcoólica que começou há dois anos, durante o Ramadão, onde vários locais onde se vendia álcool com esplanadas foram proíbidos de as manter. Curiosamente foi uma das primeiras coisas que, ao acaso, desenhei, quando visitei Istambul pela primeira vez, em dois mil e onze.


Esplanadas de rua onde se jogava gamão e entre outras coisas, se bebia cerveja
(Maio de 2011, com a devida vénia à Catarina França, Cláudia Guerreiro e Pedro Loureiro:
possivelmente um dia juntaremos todos estes nosso desenhos e façamos algo com eles)

Por fim, o primeiro ministro virou-se contra as redes sociais, que apelida de ninho de mentiras, sobretudo esse tal de Twitter. Podem ler mais sobre estas declarações aqui (tentei aceder à versão Inglesa do jornal Hürriyet mas parece estar em baixo, será coincidência? É que este era um dos poucos jornais Turcos a cobrir os desenvolvimentos a par e passo). Antes de sair do ar, o primeiro-ministro lança ainda uma ameaça velada: diz ele que lhe têm ligado da sua enorme base de apoio a perguntar: "Erdogas, a malta fica-se?" e ele, o benemérito, a acalmar a turba sedenta de sangue: "acalmai-vos, são pobres tolos manipulados (ou extremistas, dependendo da ocasião), eles não sabem o que fazem." O que parece ser algum bom senso não passa de mais uma ameaça encapotada: ou se portam bem, ou atiço-vos parte da população e aqui uma guerra cívil. Bravo, senhor estadista!

Nas ruas o pessoal celebrava a reconquista de Gezi. E celebrava-o de diferentes formas, sendo umas das mais surpreendentes e tocantes o modo como se organizaram para limpar o caos dos dias anteriores. De luvas e sacos de plástico, legiões de cidadãos (esses meleantes terroristas extremistas) puseram Taksim, Gezi e Istiklal num brinquinho. E não foi pêra doce, pois o grau de chavascal, entre cartuchos, vidros partidos, pedras da calçada e lixarada em geral era mais que muito. É de se tirar o chapéu à excelente organização dos manifestantes, que, graças ao vil Twitter, conseguiram entre outras coisas desmascarar a brutalidade da polícia, organizar grupos de médicos voluntários para acudir às vítimas, limpar os escombros, distribuir comida a quem quisesse entre outras coisas.

Istiklal esteva de novo aberta ao negócio, mas de faces pintadas. Por todo o lado grafitis que iam desde o "Democracia do Gás-pimenta" ao "Gás-pimenta: Pele Bonita :)!", a uma série de mimos dedicados ao senhor Erdoğan (tudo menos "palhaço"— há limites, caramba!). Várias caixas multibanco mais próximas de Taksim foram completamente destruídas, e várias vidraças estilhaçadas. Fica a dúvida: por quem? Possivelmente pelos manifestantes, talvez pela artilharia pesada da polícia. Seja como for, não houve notícias de pilhagens. Erdoğan, no discurso de quem tem fraca  (ou nenhuma?) espinha, chora o vandalismo e pergunta se é isto a democracia. Não é certamente, mas também não é utilizar os poderes de estado para brutalizar manifestantes pacíficos.

Já a noite tinha caído quando abandonámos Taksim. No local do mega-estaleiro, a população entretinha-se a pousar sobre as carcaças da maquinaria entretanto incendiada, e a fazer fogueiras com os materiais de construção. Parecia tudo tranquilo, mas na realidade a turbulência continuava no bairro de Beşiktaş. Como na noite anterior, milhares de manifestantes rumaram colina a baixo em direção ao palácio de Dolmabahçe, junto ao qual ficam os aposentos do primeiro-ministro em Istambul. A polícia manteve o local barricado, e o que de violento se tem passado nesta cidade nos últimos dias tem sido aqui. Muito gás lacrimogénio, pessoas encurraladas na mesquita de Dolmabahçe, uma retroescavadora tomada pelos manifestantes e utilzada contra os tanques policiais, um cordão humando de um quilómetro passando materiais para construção de barricadas e muito apoio popular (como se vê neste vídeo do bairro de Ciangir limítrofe a Taksim e Beşiktaş). Não sei como param as modas nesta segunda-feira, dia de trabalho. Nem que será de Gezi durante a semana que agora começa. É como disse uma manifestante ontem: "tudo pode acontecer".

P.S. A quem interessar— fui contactado pelo Diário de Notícias, que me pediu permissão para utilizar os desenhos que aqui tenho publicado, e algumas ideias sobre o que aqui se tem passado. É possível que surja hoje algo sobre isto na edição impressa, mas sem certezas, que a decisão editorial não é garantida.

4 comentários:

Suzana disse...

Muito bom, parabéns pela reportagem e pelos desenhos. Muito interessante perceber pelos registos antigos as mudanças que têm ocorrido, seria interessante vê-las publicadas aqui:)

Maria Celeste disse...

...hoje de manhã vi no Diàrio de Notícias,como os UskP estāo a participar em Istambul...
...coragem e muito sorte ...

Unknown disse...

Epá PeF, que prazer poder ver-te por aqui!
Trabalho impressionante aí pela Turquia!

PeF disse...

Obrigado a todos.

Suzana: talvez haja uma resultante diferente na calha para tais desenhos.

Maria Celeste: muito obrigado. Cá se vai fazendo o que se pode para dar a conhecer o que se vai passando. E com cautelas, que tenho visto muita fotografia de gente que perdeu olhos, orelhas e sabe-se-lá que mais com cartuchos-balas perdidos.

Ana Gil: muito obrigado. Achei que a ocasião pedia divulgação onde me fosse possível fazê-la, e tendo eu alguns desenhos dos eventos, foi aqui mesmo. E continuará a ser, enquanto infelizmente houver razões para relatos.