Nunca encontrei ninguém completamente incapaz de aprender a desenhar.

John Ruskin, intelectual inglês do século XIX


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domingo, 2 de junho de 2013

Türk Postallar vol 04: Katil Polis

O dia acordou tal como terminou ontem, a ferro e fogo. Durante a noite, milhares de manifestantes vindos da parte Asiática atravessaram uma das pontes do Bósforo para se juntar aos protestos em Taksim. A polícia tinha a praça tomada e barricada por todos os lados. Nem por Beşiktaş, nem pela Istiklal, tampouco por Tarlabaşı, Cihangır, Harbiye ou Talimhane se conseguia atravessar a saraivada de gás lacrimogénio. E o gás não tem servido apenas para cegar e dispersar os manifestantes— há pelo menos uma vítima mortal dos disparos. E manifestantes atingidos com disparos de cartuchos de gás, por vezes na cabeça. Alguns à queima-roupa.

A manhã foi particularmente violenta em Taksim. Só conseguimos chegar à praça da parte da tarde, onde encontramos um mar de gente ocupando o local, e a polícia acantonada nas escadas de acesso ao Parque Gezi. Parece que um pedido do Presidente Abdullah Gül fez com que a polícia abandonasse a praça. Alguém com o mínimo de bom senso. Ao mesmo tempo,
Recep Erdoğan acusava os manifestantes de, mesmo os que são boas pessoas, estarem a ser manipulados, e aconselhava-os a abandonar a praça, garantindo que o centro comercial é mesmo para avançar e não há volta a dar. E ameaçando que, se conseguem reunir cem mil, ele consegue reunir um milhão de manifestantes. Perante tanta falta de tino, houve espaço para um momento 'Malucos do Riso', com o ministro da informação Sírio a apelar ao fim da agressão Turca aos manifestantes (podem ler a notícia aqui).

Manifestantes em Taksim, sempre com algum tipo de máscara
Voltando à escadaria de Gezi, perante a avalanche de manifestantes jorrando de todas as artérias de Taksim (fala-se de um milhão, eu sinceramente não sei, mas garanto nunca ter visto tanta gente junta, ocupando densamente todos os bairros em redor da praça), deslocou-se para o lado permitindo o acesso a Gezi. Quando Gezi já estava bem recheada de manifestantes, largou sobre eles valente gaseamento. Quem é escroque, é escroque e não há nada a fazer. Passado esta salva de gás, tornaram a disparar sobre os manifestantes, e mesmo na outra ponta da praça onde estávamos se fizeram sentir os efeitos do gás. Os olhos piscos, mal os conseguia abrir. A pele ardia na face e, aos tombos, corremos na direcção da Istiklal. Um manifestante falava em gaseamento com gás-laranja, algo que não foi nunca confirmado. Por todo o lado o auxílio surgia sob forma de limões, pacotes de leite, e borrifadores com uma mistura de água e anti-ácido daqueles para problemas digestivos. Recolhemos uma cápsula de um cartucho made in USA como nos tinha mostrado um manifestante ontem. Pelo que vi em algumas fotografias, a polícia tem utilizado vários tipos de cartuchos, balas de borracha e até balas reais (oxalá tenha sido para o ar). Do parque Gezi, subia agora uma enorme coluna de fumo negro, que ninguém soube interpretar na altura. Aparentemente seriam manifestantes a queimar algo.

Manifestantes na Praça Taksim observam uma coluna de fumo erguendo-se do Parque Gezi
Mais lançamento de gás, menos lançamento de gás, as coisas acalmaram em Taksim e a praça foi completamente ocupada pelos milhares de manifestantes que pediam a demissão do primeiro-ministro. Ao princípio da noite, parece que a polícia carregava sobre Beşiktaş, mas em Taksim vivia-se um ambiente de jamboree, com música e muita, muita cerveja. Entretanto em Ancara, as coisas não foram tão calmas durante a tarde, tendo-se assistido a violentos confrontos e mais bestialidade policial (quem queira ter um valente nó no estômago, clique aqui). No regresso a casa, vi ainda uma barricada montada à entrada do bairro. A ver vamos como acorda Istambul amanhã...

Algumas fotografias e outro relato do que tenho escrito aqui.

6 comentários:

Tuba From disse...

Muito bom a cobrir uma situação horrenda e de injustificada brutalidade. Muito bem.

Manuela Rosa disse...

PeF, hoje na TSF informaram sobre o regresso à calma. O desenho é uma arma! Obrigada pelos teus relatos. Um abraço de Portugal!

PeF disse...

Obrigado a todos.

Manuela, não tenho a certeza que as coisas acalmaram. A noite passada pelo que tenho lido foi extremamente turbulenta, em diversos pontos da Turquia, com incontáveis casos de brutalidade policial. Vamos agora até Gezi, ver como param as modas.

A maioria dos média Turcos têm continuado a ignorar o descontentamento, tem sido risível o acompanhamento de todo o processo. Valham-nos as redes sociais para perceber melhor o que se está a passar. Ontem a CNN (a internacional, que a Turca ignora a situação) mostrou imagens de balas reais utilizadas em disparos para o ar— mas parece que um deles acabou por atingir um manifestante na cabeçå. Outras imagens mostram que claramente, mesmo não utilizando balas reais, a polícia tem em várias ocasiões disparado a matar, é ver o número de fotografias com manifestantes alvejados na cabeça com cartuchos de gás e outros projécteis.

Deixo aqui dois links, um de uma playlist do YouTube com vídeos bastante violentos da repressão policial (e há que continue a dizer que são terroristas/comunistas/gente-que-merece-ser-gaseada-e-que-só-tem-o-que-merece/etc...etc...etc...): http://www.youtube.com/watch?v=zvUktDH-OBM&list=PLPC0Udeof3T6EQfTPPnuyek1gNRCTiulH e outro de fotografias dos últimos dias: http://occupygezipics.tumblr.com/

Mais logo à noite.

PeF disse...

As coisas acalmaram bastante em Taksim e Gezi. A praça estava transformada em local de comício, o parque, em local de intenso pic-nic. Juntámo-nos a uns amigos e mais tarde encontrámo-nos com o Luís Simões, que está de passagem por Istambul. Amanhã escrevo um post sobre o dia de hoje, que com tantas andanças nestes últimos dias pouco tempo houve para descansar.

Isabel disse...

boa cobertura e relato do que se passa ao momento na Turquia

PeF disse...

Muito obrigado Isabel. São tempos conturbados nesta megalópolis às portas do Médio-Oriente.