Gezi Parkı não é o maior parque de Istambul. Nem o único. Mas em Beyoğlu é, se não o único, um dos poucos. O parque Gezi tem outra particularidade, fica colado à Praça Taksim.
A Praça Taksim é o lugar de eleição para os protestos em Istambul. Manifestação que é manifestação desemboca ali. De certo modo, em relevância é comparável à Praça Tahrir, no Cairo.
Erdoğan (foneticamente: Érdóã) não pode ser um democrata. Eleito democraticamente, parece ter pavor dessas coisas chamadas liberdades. Desde que tomou o poder, há mais de dez anos, tem em pézinhos de lã vindo a tornar um estado laico num estado Islâmico. Ora censura a novela por ser indecente, ora troca a bebida nacional que sempre foi o rakı (alcoólico) por ayran (iogurte salgado e nada alcoólico), ora encarcera opositores e jornalistas em barda, ora proíbe o consumo de bebidas alcoólicas depois das dez da noite. E, ultimamente, parece ter desenvolvido um novo apetite— o uso desmesurado de gás-pimenta. Diz-se que só no 1º de Maio deste ano foram 14 toneladas de químicos em cima dos manifestantes.
Mas voltemos ao princípio. A Praça Taksim e o Parque Gezi são nos dias que correm um mega-estaleiro que, entre outros planos megalomaníacos, visa a construção de um túnel do Marquês. Outro projecto é a construção de um quartel Otomano (que existia no local e há décadas foi arrasado), que, uma vez reerguido, servirá o nobre propósito de ser... centro comercial. E este novo shopping ficará— ora bem!, mesmo em cima do Parque Gezi.
Ora Istambul não é propriamente um modelo de cidade-verde. Podem-se percorrer quilómetros fora do centro histórico sem se encontrar um jardinzinho que seja. Donde, um parque a menos faz muita diferença. E faz diferença também, pois há a suspeita que não é só o parque que está em causa. Mas a praça pública, no sentido mais lato e nobre da palavra, o ponto de encontro de uma cidade, numa cidade onde o ponto de encontro é cada vez menos público.
Vai daí um grupo de Istanbulus decidiu fazer uma acampada no Parque Gezi, de modo a proteger os plátanos do abate camarário. Até aqui nada de novo. O ambiente vivido era semelhante a acampadas que já vimos por esta Península afora. Diz que havia ioga, diz que havia leitura. Diz sobretudo que era um protesto pacífico. Isto até à madrugada de 6ª feira.
Às cinco da manhã a polícia carregou sobre o acampamento, não dispensando, claro está, o uso do gás-pimenta. A talho de foice, tratou de incendiar algumas tendas e montar um cerco ao parque. A população não gostou, e acorreu aos milhares a Taksim. E seguiu-se nova carga policial e novas rodadas de químicos.
Dizia um anúncio que passava há poucos meses na televisão, que há uma linha que separa não sei quê de não sei que mais. Eu adapto: há uma linha que separa uma democracia de uma autocracia. E há outra linha que separa um homem de uma besta. E essa linha foi claramente passada nas últimas horas em Istambul. Houve de tudo: manifestantes alvejados com jactos de água na face, que os projectaram pelo ar vindo a embater desamparados de cabeça na calçada, manifestantes atropelados por veículos blindados, gás na estação de metro, um professor com as pernas partidas, um velhote que viu a sua orelha arrancada não se sabe como, uma manifestante que se não estiver morta a esta hora é um milagre. Em tudo um excessivo uso de violência e, lá está, muito, muito, muito gás-pimenta e outros químicos, tantas vezes disparados à queima roupa por uma polícia que só pode ser no mínimo sádica.
Perante tudo isto, a população como não poderia deixar de ser, reagiu. E Taksim está de novo a ferro e fogo, com milhares na rua noite fora, afrontando o estado policial que parece ter tomado conta da Turquia. Atatürk deve estar a dar voltas e mais voltas no caixão com tal estado de coisas.
Seguem-se alguns esboços feitos esta noite (31 de Maio), por entre nuvens de químicos. E mais tarde, bombas sonoras, que me fizeram dar um bom salto no ar, nunca tinha ouvido nada assim. Um manifestante veio ter connosco e perguntou-nos de onde éramos. Satisfeito por sermos estrangeiros disse-nos
em tom de súplica: "digam o que se está a passar aqui a toda a gente, nos vossos países.
Por favor." Um outro veio ter connosco e mostrou-nos um cartucho vazio: "é Americano. Vêem? Fabrico Americano". Alguns manifestantes distribuiam rodelas de limão para atenuar os efeitos do gás-pimenta– e asseguro que funciona, quando ia a encaminhar-me para casa passou-me um cartucho de gás a zunir a milimetros da cara, arrancando-me os óculos no processo, e que me deixou momentaneamente cego. Valeu-me o limão, depois de uma corrida quase às cegas para onde eu imaginava não haver polícia. A Samantha Zaza, com quem estava a tentar desenhar a manifestação, foi atingida com dois cartuchos de gás, numa perna e num pé. Felizmente nada de sério, mas ainda chorámos a bom chorar com tanto gaseamento. A zona norte da Istiklal ficou forrada a cartuchos vazios— e não é força de expressão.
Manifestantes erguem uma fogueira entre eles e a polícia. Ao fundo, a praça Taksim, completamente tomada pelas forças policiais. |
Alguns manifestantes juntam-se às dezenas batendo em tapumes de chapa ondulada. A mesma chapa era também utilzada para erguer barreiras provisórias anti-tanque. |
De borrifador com alívio para o gás-pimenta em punho, acudindo quem precisava, andavam vários manifestantes. Outros tantos distribuiam rodelas de limão. |
Manifestantes cantando e aplaudindo, enquanto não vinha nova dose de gás. Às tantas, houve fogo de artifício em Taksim— não sei quem o largou mas a multidão vibrou! |
Curiosamente, ou talvez não, os média Turcos ignoraram olimpicamente os tumultos, até agora, que não dá mais para assobiar para o lado. As manifestações alastraram a Ancara e Esmirna, com igualmente brutais cargas policiais.
14 comentários:
Incrível e chocante comentário, PeF. O teu testemunho leva-me, uma vez mais, a pensar que o nosso mundo é, no mínimo, estranho. Continua a comunicar-nos o que se passa em Instmbul. Abraço
Extraordinária reportagem, que nos transporta tambem para essa primavera turca.
Tu, os teus comentários e os teus desenhos, fazem falta por aqui.
Excelente reportagem e desenhos.
Obrigado a todos. Ainda não fui à rua hoje, talvez de tarde, depois de encher a dispensa. Não sei como estão as coisas agora. Numa conta do twitter, alguém comentava que a net vai ser cortada daqui a algumas horas, não sei se é verdade, se não.
Deixo-vos mais dois links:
http://9gag.com/gag/amXq5GV
e a capa de um dos diários de grande tiragem aqui:
http://www.netgazete.com/gazeteler.php?id=19
Na capa, o SABAH destaca a campanha anti-tabágica do senhor Erdoğan, enquanto o país é gaseado em tudo o que é manifestação. Uma pessoa não sabe se ria ou se chore.
Mais em breve, se houver net.
Grande reportagem Pef.
Uma ajuda inestimável para a compreensão do que se passa por aí. As notícias que tenho ouvido por cá na comunicação social são confusas e pouco objectivas.
Abraço
Está reportagem é importantíssima e ajuda-nos a compreender esta luta! Obrigada.
Parabéns pela iniciativa do relato. E pela coragem. Demonstra a força do desenho.
(uma nota: o "Público" já está a dar notícia da situação, nos mesmos termos que relata)
...como se apreende...
...obrigada pela reportagem e pelos desenhos...
Isto é que é um verdadeiro post no espírito USk...
Grande PeF: forte abraço para vocês os dois!
Muito bom, raramente se colocam desenhos que falem daquilo que está a contecer em tom de reportagem. Faz falta desenhar as ruas, as reuniões,desenhar o que não é bonito mas faz parte da vida e dos nossos dias.Parabéns pelo trabalho fantástico.
Rita Dias
Reportagem fantástica, parabéns pelo relato e pela capacidade de desenhar nesse ambiente!
Muito obrigado a todos. A informação anda dispersa, e muito se consegue perceber pelas redes sociais do que se está a passar. Hoje, mesmo andando mais pelo seguro, ainda assim não escapei a ser brindado com gás-pimenta (ou seria gás-laranja?). Para a noite a situação acalmou um pouco (em Taksim, noutros locais parece que não). A ver vamos como serão os próximos dias.
Muito bem PeF. Grande reportagem. Parece-me que o que inicialmente foi um protesto sobre um jardim, tornou-se claramente numa luta pela liberdade de expressão e contra a brutalidade policial. Continua o excelente trabalho. Os desenhos estão óptimos mas melhor ainda está a capacidade de os desenhar em tal situação.
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