Nunca encontrei ninguém completamente incapaz de aprender a desenhar.

John Ruskin, intelectual inglês do século XIX


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terça-feira, 30 de agosto de 2016

Santa Maria

Este foi o último desenho que fiz na ilha do Sal, onde estive uma semana. 
De todos os desenhos que fiz, este é o mais autêntico, e que me encheu verdadeiramente a alma, deixando-me sentida saudade daquele lugar. Não foi um desenho do turista, mas sim do viajante. 
Guinei à esquerda depois das ruas dos bares e lojinhas de artesanato, que me parecia tudo um bocado postiço. Foi num passeio à sombra que encontrei o Carlos e o Jorge, algures pelo chão. O Carlos deitado em cima de um caixote de papelão aberto, o Jorge de cócoras na beirinha do passeio. Sentei-me ao lado deles a desenhar a Ilisabete, uma senhora que vendia peixe dentro de um carro de mão, com um zumbido de moscas impossível de reproduzir. Enquanto a desenhava, o Carlos e o Jorge foram conversando comigo, estávamos a um palmo de distância. Um rapazinho de dois anos espreitou o meu desenho, dei-lhe um carrinho de corda que levava na minha mochila. O Carlos e o Jorge divertiram-se a lançar o carrinho, papelão acima, papelão abaixo, perante o olhar surpreendido daquele menino. 
O Jorge veio da Ilha de Santiago para vender peixe em Santa Maria. O Carlos é tratador de peixe (tira-lhe as tripas e limpa-os antes de serem vendidos), e veio da mesma ilha. Pediram-me que os desenhasse. Fiz-lhes a vontade, deliciado pelo momento. Perguntaram-se se lhes podia fazer um agrado. Perguntei qual. Pediram-me um euro para juntar a outro que tinham, para comprar uma garrafinha pequenina de grogue, uma aguardente potentíssima feita com cana de açucar. Larguei os lápis de cor por alguns momentos, bebemos um penalti de grogue cada um. Depois de terminar o desenho, pediu-me o caderno e desatou dali a correr, radiante, a mostrar a todos os daquela rua o seu retrato. Bebemos mais um copo de grogue. Pedi-lhe a morada, que lhe prometi enviar uns brinquedos e roupas para o seu filhote de dois anos. Disse-me que não tinha morada, mas que enviasse para o posto dos correios, escrevendo o nome dele, que havia de lhe chegar.
Saí dali emocionado, com vontade de permanecer até ficar noite. a mesma noite em que iria regressar a Lisboa, com tantos desenhos de viajante por fazer...


11 comentários:

Rodrigo Briote disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria Celeste disse...

...um urban com alma de viajante...
...um arquiteto desenhador de interiores humanos...

Ana Crispim disse...

Vendo os teus desenhos e os da Teresa fico sempre com vontade de sair por aí e desenhar pessoas...

João Santos disse...

Adoro o desenho e a descrição que fazes. E gosto da distinção "Não foi um desenho do turista, mas sim do viajante"

Bruno Vieira disse...

Fabuloso

Teresa Ruivo disse...

Então isto é que é "não ter desenhado nada" Nelson?!?! Vai-te lixar :) E manda mas é os outros!Aposto que são todos igualmente excelentes, claro!

Rita Caré disse...

Sim, sim! Faz-nos lá esse "agrado" e posta lá os desenhos, porque nós estamos aqui em "pulgas" para os ver e ler :D

Eduardo Salavisa disse...

Grande momento!

José Louro disse...

ganda nelson!

Mário Linhares disse...

É assim mesmo!

cláudia mestre disse...

Adoro o desenho e a autenticidade do momento que transmite! Gosto de ler os teus textos! Quero ver mais :)