Nunca encontrei ninguém completamente incapaz de aprender a desenhar.

John Ruskin, intelectual inglês do século XIX


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segunda-feira, 17 de julho de 2017

Companheiros

"Boa tarde, boa tarde"
"Podem-me desenhar, podem-me desenhar. Já me desenharam hoje"
"E até podem tirar fotografias, desde que não metam na internet"
"Quer dizer podem meter na internet"
"Chamo-me Paulo Monteiro, mas toda a gente me chama Pavarotti"
"Pavarotti com dois tês e um i no fim"
"Não vos faz diferença assim este pó para cima de vocês?"
"Faz hoje um ano que estou na comunidade Emaus, faz hoje um ano, a 15 de Julho"
"Agora estou no restauro, mas eu gosto mesmo é de andar na recolha"
"Já trabalhei para a worten a entregar electrodomésticos"
"E também já andei entregar daqueles garrafões de água nas empresas"
"Mas agora estou aqui, e enquanto estou aqui não penso em coisas negativas, só penso em coisas boas"
"Enquanto estou a trabalhar só penso em coisas boas"
"Incomoda-vos que eu fume?"
"Eu daqui bocado podia cantar para vocês"
"Nunca fui cantor nem nada, nunca andei no conservatório, mas um dia gostava de andar"
"Depois mandem-me chamar que eu canto para vocês"

Passavam das quatro e meia da tarde, estávamos a acabar a partilha dos desenhos. Distribuídos em roda na grande cozinha, com o Óscar, o cozinheiro natural de Moçambique nesta tarde transformado em modelo vivo, a escutar-nos com atenção. Até atender o telefone e começar a falar tão alto. Afinal, os invasores até éramos nós, que ousadia. Olhei para a porta de entrada e lá estava o Pavarotti, ninguém o tinha ainda ido chamar, mas palavra de honra que iria eu assim que acabássemos a nossa jornada dos desenhos, é que lhe tinha prometido. Parecia um daqueles concorrentes anónimos, nervoso e à espera que o chamem para o casting de um programa de talentos. Fiz sinal ao Mário que o Pavarotti queria cantar para nós. Desceu os dois degraus desde a soleira até ao chão da cozinha, fez uma introdução a desculpar-se que não sabia cantar, que que aquilo não era uma música, mas sim algo da sua invenção. Tomou um lugar de destaque no meio de nós, de camisa preta aos losangos brancos, aberta até ao meio e empoeirada de pó fininho das cadeiras que raspou toda a tarde. Cerrou os punhos, encheu o peito de ar e despejou um vozeirão inesperado para cima de nós. A postura corporal, a expressão e o sentimento daquele momento arrebatou cada um de nós, que deixou de respirar por breves instantes. Terminou em apoteose, recebeu um merecido e longo aplauso, e deu ainda mais razão a um dia formidável passado num lugar mágico, que recebe gente perdida e apenas quer saber o seu primeiro nome. E de seguida o chama de companheiro.

Foi um Sábado inesquecível. Fiquei com muita pena de não trazer aquele relógio vintage que desenhei no meu caderno, que só em casa me lembrei o quanto era encantador. Pousado no móvel da minha sala, e minuto após minuto virado naquela chapa preta, me faria lembrar daquele lugar e das suas gentes, e que a vida pode ser tão injusta e ao mesmo tempo maravilhosa. E que vale sempre a pena acreditar e ter esperança.

E obrigado Mário pela possibilidade de fazer parte deste formidável programa dos 10 years 10 classes. Espero ter estado à altura.







16 comentários:

Bruno Vieira disse...

Ficaram mesmo expressivos, cheios do tecido da vida, pessoas e histórias.

Rodrigo Briote disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
cláudia mestre disse...

Li tudo! Belos texto e desenhos! Amei!

João Santos disse...

Caramba, agora para além dos teus desenhos também sou fã da tua escrita. Que maravilha de post!

Fernanda Lamelas disse...

Maravilhoso, companheiro!

Rita Catita disse...

Compreendo o fascínio que tens pelas pessoas, pelas suas histórias. A forma como te expressas é única e apaixonante. Valerá a pena ser de outra maneira?

Marcelo de Deus disse...

MARAVILHOSO ! PARABÉNS !

Ketta disse...

Boooolas, companheiro!

Celeste Vaz Ferreira disse...

Acho o desenhos maravilhosos mas as palavras emocionaram-me.
Devias mesmo ter comprado relógio!

Filipe Pinto disse...

Excelente post e parabéns pelo teu contributo para o 10 x 10. Gostei de participar nas sessões que orientaste.

Mário Linhares disse...

O texto, quando é assim, lê-se num instante! ;)
O 10x10 só funcionou tão bem porque os USkP são um grupo fenomenal. Participantes que podiam ser instrutores e instrutores que queriam era ser participantes. Fantástico!

Devias ter comprado o relógio. Chegavas a casa e dizias que tinhas comprado uma televisão vintage a pesar 30 quilos. Depois do ralhete dizias que tinha sido apenas um relógio de mesa e ficava tudo bem! ;)
Podes sempre voltar lá para tratar disso...

Foi um dia mesmo especial. Sabia, desde o início, que este era o local certo para a última sessão do 10x10!

Pedro Ribeiro disse...

EXTRAORDINÁRIO!

Foi muito bom ter-te como orientador pois nas tuas sessões aprendi imenso, mas no sábado não deixei de aprender menos só a olhar para os teus magníficos desenhos.

Disseste um dia que o que te fascinava era mesmo as histórias, pois bem Nelson, a escrever assim creio que é uma perda que não escrevas um livro de histórias, histórias essas que, depois das palavras possas ilustrar com os teus desenhos!

Obrigado pelos ensinamentos e coaching!

Bem hajas

abnose disse...

Adorei! Grandes desenhos e texto digno dos mesmos.

Teresa Ruivo disse...

Grandes desenhos camarada: Parabéns! Um imprevisto impediu-me de ir. Fiquei furiosa!

André Duarte Baptista disse...

Chama-se a isto, desenho com conteúdo. muitos parabéns

L.Frasco disse...

Grande post, Nelson!!

Tem tudo: bons desenhos, grandes histórias, emoção, sentimento, verdade,... PARABÉNS!!